quarta-feira, 24 de março de 2010

Doações não devem depender de lucros, diz especialista sobre "FarmVille"

A empresa Zynga foi criticada no início de março por realizar uma campanha de doação ao Haiti em 2009 em que 50% do obtido durante venda de bens virtuais em seu game de fazenda virtual "FarmVille" era de fato doado. Para a empresa, isso seria algo normal.
No entanto, "qualquer ajuda beneficente não implica em ao mesmo tempo ganhar com isso, senão ela se torna ajuda interessada", declara o professor Milton Meira do Nascimento, responsável pela disciplina na USP Ética e Direitos Humanos. "Vou doar só porque estou ganhando?", questiona ele.

Uma das linhas de defesa da companhia é que havia clareza quanto à percentagem doada nesse ano, e que outras empresas doam porcentagens ainda menores durante as campanhas que realizam com vendas de seus produtos.


"É claro que, num processo hiper-moderno, o que interessa é o capital, e isso é típico de um mundo capitalista: uma prática de mercado sem referencial ético", diz ele. "Mas é também uma visão distorcida dos direitos humanos --eles não deveriam exigir reciprocidade."
Nascimento analisa que este tipo de iniciativa seja simplesmente uma jogada de mestre na perspectiva do lucro da empresa. "O consumidor pode ficar sensibilizado com ela", diz ele. "Vira um marketing em cima de uma tragédia".
Filantropia de verdade, declara o professor, é doação direta e ponto final. "Há muitos empresários que doam até sem aparecer", diz ele.
A administradora Débora Lins, do núcleo de atendimento do Instituto Ethos, relativiza: "toda ajuda é válida, as empresas também visam o lucro delas, e ao mesmo tempo estão visando o marketing".
Ela observa que a prática não é a ideal, mas, "para quem não está fazendo nada, seria incentivável". No entanto, ela aponta que, se a empresa faz isso quando há uma calamidade, poderia fazer sempre então.
No caso do Ethos, "se tivéssemos um projeto para ajudar o Haiti, procuraríamos o patrocínio de empresas primeiro, além das contribuições associativas [das associadas] delas ao instituto, que vão 100% para os projetos", explica a administradora.
A pesquisadora de redes sociais e educação Lilian Starobinas faz coro com a opinião de Nascimento. "É muito delicado associar a venda de produtos à arrecadação para causas humanitárias". Para ela, é "inadequado que se use essa sensibilização para benefícios financeiros".
Quando se faz um show beneficente, por exemplo, pode-se dizer que ao menos parte dos valores vão cobrir custos de locação, transporte, e normalmente o cantor abre mão do cachê, compara ela. Mas o custo da empresa para a "produção dos bens virtuais" não deve ser tão significativo a ponto de exigir ficar com 50%, como aconteceu em 2009.
Para Starobinas, mesmo que a empresa retivesse 1%, seria questionável, considerando-se a perspectiva de mobilização das pessoas e a escala da internet, em que milhares de pessoas participam.
A pesquisadora afirma que a época é de disseminação de aplicativos, e "a fronteira entre jogo e realidade, causa e ficção do game nao ficam completamente claras".
Além disso, a partir do momento em que o usuário está investindo em uma moeda virtual de um aplicativo de game por exemplo, "vira um negócio", uma "ficha de fliperama", compara Lilian. Com essa etapa intermediária, "se você ainda atrela a arrecadação à necessidade de participação e presença posterior no game, você dificulta ainda mais que o fim [da doação] seja cumprido".
Starobinas ressalta que usuários têm diferentes hábitos quanto ao uso do game (de jogadores esporádicos até excessivos) e, portanto, diferentes níveis de dificuldade para se concretizar o processo de ajuda humanitária. Também há os que nunca compraram créditos do jogo, e acabam sendo convencidos a fazê-lo, sensibilizados por uma causa.
O publicitário brasileiro Flávio Paulino é um caso desses: ele diz que nunca havia comprado dinheiro virtual do "FarmVille", até que apareceu a campanha de doações ao Haiti em 2009. "Na minha política pessoal eu não gastaria dinheiro com o jogo, apenas comprei pelo fato de estar ajudando o Haiti", afirma ele, que não percebeu a fração retirada de 50% na ocasião e depois a achou exagerada.

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