É briga de cachorro grande. De um lado, estão grandes produtores de
obras protegidas por direitos autorais, como Hollywood, o que restou da
indústria fonográfica e grandes editoras. Do outro, alinham-se ícones da
era digital como Google, Facebook, Wikipédia.
O objeto da disputa são dois projetos de lei que tramitam no Congresso
dos EUA conhecidos pelas siglas Sopa e Pipa, que preveem punições
severas não apenas para quem pirateia conteúdos e marcas, mas também
para quem "permita ou facilite" essas atividades, daí a preocupação dos
gigantes da nova mídia. Se as normas mais draconianas forem aprovadas,
eles teriam de responder não apenas por suas próprias ações, o que é
normal, mas também pelo que usuários de seus serviços possam fazer, o
que não é.
Há várias outras disposições apontadas como abusivas. Juízes estariam a
autorizados a expedir mandados que suspendam publicidade tida por
irregular (o alvo são anúncios oferecendo remédios mais baratos
importadas do Canadá) e suspendam operações de pagamento para websites
suspeitos. O Judiciário poderia também exigir que programas de busca
deixassem de fazer o link para supostos infratores e até que provedores
de acesso bloqueassem suas atividades. As penas chegariam a cinco anos
de cadeia para quem cometer dez dessas infrações num prazo de seis
meses.
A batalha ganhou visibilidade global na semana passada, depois que o
presidente Barack Obama se manifestou sobre a questão, afirmando que a
Casa Branca não apoiará leis que favoreçam a censura na internet ou
reduzam a inovação, e representantes da nova mídia organizaram um dia de
protesto contra os projetos. A versão em língua inglesa da Wikipedia
fez uma greve de 24 horas. A operação foi tão bem-sucedida que os
republicanos, que patrocinavam os projetos, acharam melhor colocá-los na
geladeira, "até que haja consenso". Ou seja, mais dia, menos dia,
voltarão à carga, provavelmente em termos mais brandos.
Não há muita dúvida de que as propostas eram excessivas. Um dos
princípios mais elementares do direito penal é o de que as condutas dos
diversos agentes precisam ser meticulosamente individualizadas e ninguém
responda por ilícitos que não tenha cometido. A Sopa liquefaz esse
preceito.
Obama não exagera quando diz que, se essas regras estivessem em vigor, a
liberdade de expressão e o potencial para produzir coisas novas seriam
em certa medida erodidos. Uma das características mais interessantes e
revolucionárias da rede mundial de computadores é sua capacidade de
ligar bilhões de usuários e ideias, multiplicando as possibilidades de
interação. Uma internet menos livre reduz algo dessa propriedade
emergente, que é sua maior virtude.
Apesar disso tudo, devemos refrear nosso ímpeto natural de apoiar
incondicionalmente os que defendem a liberdade total na rede, sem
considerações para com direitos autorais. Embora essa posição possa
satisfazer nossos ideais românticos, ela é inconsequente.
Gostemos ou não, tudo, de um clipe a uma tese de doutorado, tem custos
de produção. Podemos ir um pouco mais longe e afirmar que itens de
melhor categoria tendem a ser mais caros, pela simples razão de que
demandam mais recursos e trabalho para ser feitos. Se queremos ter
acesso a textos, sons e imagens de qualidade na internet, precisamos
antes de mais nada encontrar uma fórmula que garanta remuneração a seus
autores, ou eles se dedicarão a outras atividades, que lhes garantam o
leite das crianças. Basicamente, não há milagre (ou "almoço grátis", se é
lícito citar Milton Friedman): sem direitos autorais ou outra forma
equivalente não haverá autores para produzir o que queremos ler, ouvir e
ver. Ou melhor, até haverá quem o faça de graça, por prazer, vaidade ou
legítima benevolência, mas não em tempo integral nem com os bônus
gerados pela especialização.
Assim, apesar do que diziam os chineses alguns anos atrás, quando ainda
eram comunistas de verdade e pirateavam tudo alegando que todo o
edifício intelectual era patrimônio da humanidade, direitos autorais têm
uma função social, que é a de permitir que alguns indivíduos possam
dedicar-se integralmente atividades intelectuais ou artísticas não
financiadas pelo Estado. Proteger esse sistema através de leis não é uma
ideia absurda, desde que as regras não criem prejuízos maiores do que
os ganhos que pretendem assegurar. Não é este o caso de Sopa/Pipa, mas
daí não decorre que seja impossível chegar a uma legislação balanceada
para o problema.
Adianto, porém, que, até por razões biológicas, eliminar ou reduzir a
pirataria será provavelmente mais difícil do que controlar outros tipos
de ato considerados delituosos. Comecemos com Kant. O filósofo de
Königsberg conclui a "Crítica da Razão Prática" afirmando que duas
coisas o enchiam de admiração: "O céu estrelado sobre mim e a lei moral
em mim". Com efeito, a lei moral em nós é provavelmente o atributo
social mais venerável dos seres humanos.
Leis, como todo mundo sabe, servem para definir crimes e, ao fazê-lo,
prevenir sua ocorrência, ao introduzir um custo (a pena prevista) para
quem os cometer. Até certo ponto, funciona. Mas vale lembrar que,
historicamente, o homem e seus ascendentes viviam em bandos milhões de
anos antes de serem capazes de escrever as primeiras leis. Isso implica
que existem outras formas de promover a sociabilidade.
Antes do Código de Hammurabi já existiam leis não escritas que eram
impostas na forma de normas culturais. E, antes mesmo de sermos capazes
de trocar ideias e desenvolver culturas, já estavam em jogo sentimentos e
emoções de origem puramente biológica que permitiram que formássemos
grupos, a exemplo de babuínos e lêmures.
Os exemplos clássicos são as sensações de culpa e vergonha, às vezes
chamadas de emoções sociais, já que favorecer a convivência com o
próximo parece ser sua principal razão de existência. Mas não é só. Há
uma série de experimentos psicológicos fortemente sugestivos de que o
ser humano tem uma espécie de resistência natural em provocar dano
físico a terceiros.
A evidência vem de diferentes fontes. Há uma série de experimentos
mentais, em que um número substancial e desproporcional de pessoas diz
que não tomaria uma determinada ação, como empurrar alguém sobre a linha
do trem, ainda que essa atitude salvasse um grande número de vidas.
Cushman e seus colaboradores chegaram à mesma conclusão medindo as
reações fisiológicas de uma série de voluntários enquanto cometiam
assassinatos simulados. Grossman mostrou que até soldados treinados e
motivados para matar muitas vezes erram o alvo deliberadamente.
Isso não significa que sejamos incapazes de matar (há farta documentação
que prova o contrário), mas sim que, para fazê-lo, precisamos passar
por cima de certas programações cerebrais. Para a maioria de nós,
fazê-lo pode exigir algum treinamento. Há trabalhos mostrando que mesmo
assassinos seriais precisam de algum preparo antes de conseguir eliminar
suas vítimas sem experimentar reações de aversão.
Não há muita dúvida de que esse filtro natural ajuda bastante na
implementação das leis contra o homicídio. A esmagadora maioria da
população jamais assassinou ninguém e não o faria mesmo que não
existisse nenhuma norma legal contra isso. Homicídios são mais raros do
que roubos à mão armada, que são mais raros do que furtos, que são mais
raros do que a compra de DVDs piratas.
A natureza, é claro, não teve tempo de desenvolver genes de proteção à
propriedade privada --uma invenção relativamente recente--, mas a ideia
de que é errado roubar objetos físicos está solidificada em alguns
milênios de normas culturais. Já a noção de que não é muito bacana
apertar um botão para copiar gratuitamente o filme produzido por um
terceiro é justamente isto: uma leve noção, que não está amparada por
nenhum tipo de emoção social e nem mesmo tradição cultural. Até que o
grosso da população mundial introjete essa ideia e reconheça os direitos
autorais como uma forma justa de troca social, a pirataria e a
reprodução não autorizada deverão continuar sendo um negócio
disseminado.
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