segunda-feira, 25 de junho de 2012

A tecnologia como ferramenta diplomática


Três anos atrás --quando eu ainda acreditava despreocupadamente na utopia cibernética-- escrevi um ensaio curto sobre "diplomacia tecnológica" para a revista "Newsweek".
O artigo --de longe o mais frívolo que já escrevi-- criticava os diplomatas dos Estados Unidos por não explorarem o imenso poderio digital que uma companhia como a Amazon tinha a oferecer. O Kindle, escrevi, "é o aparelho dos sonhos dos dissidentes", e poderia "pôr fim à era em que visitantes estrangeiros precisam contrabandear textos clandestinamente para fora de países autoritários". Se Washington simplesmente aderisse à diplomacia via Kindle poderia "subsidiar discretamente a compra dos textos que considere mais influentes e propensos a estimular o raciocínio crítico."
Bem, os dissidentes podem começar a comemorar. Três anos depois do artigo, o Departamento de Estado norte-americano enfim anunciou uma ambiciosa parceria com a Amazon. O programa --que deve durar cinco anos-- envolverá investimentos de até US$ 16,5 milhões na compra de um máximo de 35 mil Kindles e de livros para o leitor eletrônico, e cobertura de custos de transmissão. Um Kindle dotado de todos os recursos custa cerca de US$ 200, o que deixa por volta de US$10 milhões para a compra de livros. Dados os baixos preços da Amazon, isso poderia facilmente significar um milhão de livros. A quem esses Kindles todos seriam destinados? A ideia é distribuí-los a mais de 800 bibliotecas, salas de leitura e centros culturais --frequentados por mais de seis milhões de jovens-- apoiados pelo Departamento de Estado norte-americano em todo o mundo.
O discurso teórico que embasa a iniciativa parece sólido. De um jeito ou de outro, o governo americano equipa seus pontos de divulgação cultural com livros, material didático e jornais; fazê-lo pela via digital resultaria em economia de custos e em aceleração do processo. Seria fácil imaginar um sistema sob o qual os frequentadores de um centro cultural na Argentina poderiam tomar emprestados livros eletrônicos que fazem parte do acervo de um centro cultural semelhante na Espanha. Além disso, livros problemáticos e censurados poderiam ser lidos sem que superlotem estantes ou atraiam a atenção dos censores dos governos locais. Os diplomatas norte-americanos acreditam que o programa "serviria para enfatizar a imagem dos Estados Unidos como líderes em tecnologia."
Infelizmente, a realidade é muito mais complicada. Eu, por exemplo, já não acredito que uma parceria entre os diplomatas norte-americanos e a Amazon seja uma ideia inequivocamente boa. Na verdade, eu estava completamente errado --e também fui perigosamente ingênuo-- três anos atrás. O que não consegui antecipar, então, foi o quanto seria difícil para as empresas americanas de tecnologia manter nem que uma camada superficial de independência quando cooperam com o governo dos Estados Unidos. O Vale do Silício quer ser visto como promotor da paz, do acesso ao conhecimento e do diálogo universal, mas na verdade é visto como um setor em conluio com os poderosos, promovendo qualquer agenda que interesse a Washington.
O Twitter pode de fato ser visto como agente independente quando o Departamento de Estado foi capaz de convencer seus dirigentes a postergar uma parada do site para manutenção, como aconteceu quando da fracassada revolução iraniana de 2009? O Google pode mesmo ser visto como neutro quando recorre à Agência Nacional de Segurança para obter ajuda, como fez depois de ser atacado (supostamente pelo governo chinês), no começo de 2010? A Amazon pode ser vista como neutra quando cedeu à pressão dos políticos norte-americanos e expurgou de seus servidores os arquivos subidos pelo WikiLeaks --o mais famoso dos inimigos públicos do Departamento de Estado-, como fez no final de 2010?
Será que os US$ 16,5 milhões que a Amazon está para receber podem ser interpretados como recompensa pelo seu bom comportamento durante a saga do WikiLeaks? Provavelmente não -mas será inevitavelmente assim que os defensores de teorias de conspiração em Moscou, Teerã e Pequim encararão o acontecido. (O fato de que a seleção da Amazon não envolveu concorrência pública só reforçaria seus argumentos.) Entre os adversários dos Estados Unidos, o Vale do Silício é visto cada vez mais como apenas mais uma ferramenta para que Washington exercite seu poder. Dada a recente controvérsia quanto a programas de espionagem como o Flame, criados pelos Estados Unidos, os políticos estrangeiros que usarem Kindles para ler qualquer coisa deveriam pensar duas vezes: como é que podem estar certos de que o governo norte-americano não está estudando discretamente seus hábitos de leitura, por intermédio da nuvem da Amazon?
Os adversários dos Estados Unidos provavelmente verão essa nova iniciativa quanto ao Kindle como indicação das intenções norte-americanas de politizar os livros eletrônicos --uma maneira astuta de empregar a infraestrutura de comunicações do Vale do Silício para pressionar discretamente por mudança de regime. Não importa que uma mudança de regime seja ou não a verdadeira intenção norte-americana. Na maior parte dos casos, a política internacional envolve 90% percepção e apenas 10% de realidade. Na verdade, os regimes da China, Rússia e Irã já têm dúvidas desse tipo quanto à sua dependência de serviços de e-mail e buscas, sistemas operacionais e sites de redes sociais norte-americanos --o que explica seus agressivos esforços para expurgá-los, adotando alternativas de fonte aberta, com sistemas equivalentes desenvolvidos em seus países e classificados como ativos estrategicamente importantes que não podem ser vendidos a investidores estrangeiros.
Na era do Flame e do Stuxnet --desenvolvidos pelo governo norte-americano para explorar pontos vulneráveis de software também criado nos Estados Unidos--, essas preocupações nada têm de trivial. Quanto vai demorar para que China e Irã proíbam todos os leitores eletrônicos estrangeiros e promovam alternativas nacionais? E alguém duvida que elas seriam muito piores para a privacidade e liberdade de expressão dos dissidentes do que o Kindle atual --que, por razões políticas, pode se tornar mais e mais difícil de obter nesses países? Ao fechar acordo com a Amazon, o governo norte-americano cria incentivos distorcidos no mercado mundial de leitores eletrônicos. Ferramentas que até agora eram vistas como benignas e irrelevantes passarão a ser encaradas como subversivas. Esse é o verdadeiro paradoxo da "agenda de liberdade na Internet" promovida pelos Estados Unidos: quanto mais intensamente Washington a promove, pior as coisas ficam.
E é aí que reside uma lição útil para diplomatas bem-intencionados ou, como eu, antigos partidários das utopias cibernéticas: não importa o quanto um leitor eletrônico, rede social ou serviço de busca seja bom para distribuir informação, é errado considerá-lo como simples ferramenta dotada de significados estáveis e coerentes (e muito mais errado supor que seus efeitos sejam claros e previsíveis). Quando o governo dos Estados Unidos as adota, essas ferramentas deixam de existir no vácuo geopolítico do Vale do Silício. A longa e complicada história da política externa norte-americana, as atuais experiências de Washington com armas cibernéticas, as disputas anteriores entre o Vale do Silício e os governos autoritários --estes são apenas alguns dos muitos fatores que determinam como essas ferramentas serão interpretadas. Em outras palavras, seus significados, capacidades e efeitos dependem de quem está olhando, e com que fim.
Isso não significa aceitar o derrotismo ou sugerir que os diplomatas não deveriam testar o uso das mais recentes tecnologias. Mas precisam fazê-lo plenamente cientes de que suas intenções benignas podem ser mal interpretadas e ter resultados opostos aos pretendidos, ocasionalmente. A busca por inovação pode em muitos casos não valer a pena --especialmente se acarreta o risco de agravar as coisas em longo prazo. E tudo que sabemos sobre a parceria entre o Departamento de Estado e a Amazon sugere que os diplomatas norte-americanos não estão conscientes disso. O aparelho com que os dissidentes sonham continua a ser exatamente isso: um sonho.

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