segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Além da imaginação


O Facebook armazena dez mil vezes mais fotografias do que a biblioteca do Congresso dos EUA, o maior acervo físico do mundo. O Flickr guarda cerca de 6,5 bilhões de fotos, e recebe quase dez mil novas contribuições por dia. Qualquer telefone celular vem com câmera. Máquinas portáteis e baratas já armazenam mais de 10 megapixels por imagem. Equipamentos semiprofissionais, custando pouco mais de mil dólares, fazem até vídeo de qualidade em alta definição. No iPhone, comunidades como o Instagram e aplicativos como o Hipstamatic embelezam praticamente qualquer foto, transformando qualquer assunto, registrado por qualquer pessoa, em uma visuais interessantes. Não há dúvida: a fotografia se democratizou além dos sonhos mais delirantes de Louis Daguerre, William Fox Talbot e George Eastman.
Há quem diga que ela, por esses mesmos motivos, tenha morrido. Agora que a alquimia do laboratório foi substituída pelo photoshop, que o fetiche da Hasselblad foi transferido para o Macintosh e que o glamour dos grandes estúdios e suas verbas astronômicas foi substituído por novos profissionais de talento e experiência variados, que enfrentam a concorrência feroz de autodidatas, diletantes e amadores.
Não há como negar que o comércio de imagens criativas esteja em crise, com orçamentos e prazos cada vez menores, e que o cenário não deva mudar tão cedo --se é que mudará. Como se a situação não fosse grave o suficiente para os profissionais da área, a Internet (sempre ela) contribui para acelerar o processo ao facilitar o acesso a programas de edição, cursos on-line e livros diversos.
A mesma rede que ajuda a identificar novos talentos ao conectar profissionais e estúdios remotos também questiona o trabalho de fotógrafos profissionais ao dar acesso a grandes bancos de imagens que vendem belos retratos a menos de cinquenta dólares. Isso, naturalmente, sem contar a gigantesca biblioteca de referência (e pirataria) que se tem a partir de uma busca no Google Imagens.
Por mais que não faltem críticas de puristas com relação à "nova" fotografia (muitas delas com razão, levado em conta o exagero indiscriminado de efeitos e retoques), o fato é que a transformação veio para ficar. Não é mais possível imaginar um futuro em que imagens voltem a ser caras, trabalhosas, químicas e restritas a um grupo limitado que tenha acesso a equipamentos sofisticados de captação e reprodução.
Apesar de todos os exageros cometidos, acredito que a transformação seja benéfica. A começar pelo fato de estimular a produção de imagens. A fotografia é uma importante introdução para a comunicação visual, cada vez mais relevante em ambientes repletos de imagens, ícones e símbolos. À medida que a informação presente na rede é amplificada e enriquecida, a alfabetização Visual tende a ser cada vez mais importante. Imagens, ao contrário de textos, são absorvidas instantaneamente, e podem facilitar a tomada de decisões rápidas.
Por falta de uma educação visual, a maioria das pessoas se vira com o que tem, e sai fazendo o equivalente visual do portunhol sempre que tira uma foto. Enquanto isso designers, ilustradores, fotógrafos, decoradores e publicitários em geral reclamam pelos cantos que seus clientes são incapazes de compreender o trabalho que fazem e curadores escrevem textos impenetráveis nas paredes e programas de museus e galerias, citando referências obscuras e se queixando da ignorância e desinteresse do povaréu.
Não é tão simples. Muitos dos críticos na verdade têm medo de se tornarem obsoletos, por isso pregam a velha ladainha e não fazem nada para evoluir ou popularizar a educação. Enquanto isso, videogames, câmeras e aplicativos gráficos estimulam a atenção de seus usuários para o registro e a identificação de parâmetros, bem como para prestar atenção a qualquer mudança ocorrida neles. Essa habilidade é cada vez mais útil para físicos, pilotos, estatísticos, políticos, desenvolvedores, profissionais de logística e analistas de segurança, profissões que, embora pareçam distantes das Artes, dependem cada vez mais da capacidade de reconhecimento de padrões.
A imagem "estilizada" por aplicativos como o Instagram é um tipo diferente de fotografia, que deve ser encarada como uma nova expressão. Da mesma forma que a popularização das câmeras promoveu o fim de muitas pinturas de retratos e estimulou o surgimento de gênios como Monet e Van Gogh, bons fotógrafos não devem se intimidar. Devem, sim, procurar novas linguagens que transcendam as câmeras e estúdios.
A exposição "Imaginário", do fotógrafo Rafael Costa na galeria Contraponto na Vila Madalena, é um bom exemplo do que se pode esperar da nova fotografia artística. Suas imagens, saturadas e disformes, parecem pinturas impressionistas. A técnica para produzi-las, no entanto, não tem nada de photoshop: elas são impressas no verso do papel fotográfico, o que faz a tinta borrar aleatoriamente até chegar ao ponto desejado, quando são fotografadas novamente. É uma técnica parecida com a de Andy Warhol, que desenhava em papéis porosos e entregava a imagem que ficava registrada no mata-borrão. O resultado, no entanto, é muito diferente do que se espera da Fotografia.
Uma das maiores contribuições da Internet para o desenvolvimento da Arte e da Ciência foi a de demolir as barreiras erguidas por privilegiados que tinham acesso a algum equipamento ou conhecimento para se defender daqueles que estavam do lado "de fora". Boa parte das conquistas das mídias sociais é um bom reflexo disso. Como dizia a minha avó, quem não tem competência, não se estabelece.

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