O acordo suscitou polêmica mundial por supostamente afetar a chamada neutralidade da rede, conjunto de princípios que não discriminam os conteúdos virtuais.
A base do texto é a divisão entre internet com e sem fio. Esta última, a mais usada nos EUA, não estaria submetida à neutralidade de rede. Assim, o Google poderia pagar para o YouTube ser mais rápido do que sites concorrentes, por exemplo.
John Bergmayer, membro da organização de direitos digitais norte-americana Public Knowledge, criticou o acordo: "Há muitas ambiguidades na proposta, especialmente no que se refere aos 'serviços on-line adicionais'".
Para Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV e colunista da Folha, a discussão no Brasil será bem diferente daquela que está acontecendo nos EUA. "Estamos um pouco distantes de termos duas internets, a tradicional e outra sem fio", disse.
A posição oficial do Google está disponível no blog da empresa mas, procurado pela Folha, Felix Ximenes, diretor de comunicação do Google Brasil, disse que o debate até agora se restringe aos EUA: "Não estamos comentando esse assunto por aqui".
Leia a seguir a íntegra da entrevista com Ronaldo Lemos.
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Folha - Qual a sua visão sobre a proposta junta do Google e Verizon?Ronaldo Lemos - A proposta do Google e da Verizon coloca em risco o princípio da neutralidade da rede. A questão da neutralidade é fundamental para a inovação na internet. Se ela é perdida, isso implica uma concentração de poder muito grande nos provedores de serviço e nas grandes empresas, como o Google. Uma das qualidades que tornaram a rede o que ela é hoje, caracterizada pela quantidade enorme de novos produtos e serviços surgidos nos últimos 15 anos, é o fato dela ser neutra.
Tanto pequenos empreendedores quanto grandes são tratados da mesma forma e podem esperar qualidades de serviço semelhantes. Nesse sentido, a rede de hoje não tem "gatekeepers" ou barreiras significativas à entrada de novos empreendedores. Isso pode deixar de ser assim se o princípio da neutralidade deixar de ser praticado.
E sobre o impacto real dela?
O acordo da Verizon afeta especificamente as redes sem fio e os serviços "premium", isto é, aqueles com capacidade de consumir um volume de tráfego muito grande. Dentre eles, a transmissão de vídeo em 3D, bem como a criação de plataformas de games sofisticados rodando na "nuvem", sem a necessidade do usuário instalar o software no seu computador. Parecem serviços ainda distantes da nossa realidade.
Mas se a neutralidade da rede for perdida, empresas iniciantes independentes (start-ups) terão dificuldades de entrar nesses mercados, que pode ficar concentrado nas mãos dos grandes. É curioso notar que se o princípio da neutralidade da rede não estivesse valendo, o próprio YouTube teria tido dificuldade de ser criado, já que ele surgiu como empresa independente. Os custos de uso de banda poderiam ter se tornado altos demais.
Por essa razão, a perda da neutralidade afeta de modo generalizado a inovação da rede ao criar qualidades de serviço diferentes para as empresas grandes, que podem pagar a mais e pequenas, que não podem.
Alguns analistas, para tentar explicar o acordo, usaram uma metáfora que remonta à TV. Segundo ela, a nova internet seria como uma TV a cabo, trazendo conteúdo adicional com preços mais altos. Essa analogia é boa?
A comparação com a TV a cabo é boa, na medida em que para oferecer serviços pelo cabo você precisa da permissão de quem o controla. A proposta da Google e da Verizon faz algo semelhante. Abre o caminho para que serviços mais sofisticados de internet dependam da permissão e da boa vontade dos provedores de serviço.
O acordo versa também sobre o controle de conteúdo legal e ilegal. Como o senhor vê as propostas à luz do Marco Civil brasileiro?
O texto do Marco Civil está sendo terminado pelo Ministério da Justiça em parceria com nosso Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV e deve ser divulgado ainda esse ano. Sua versão inicial, que foi construída em consulta aberta na internet, trazia a neutralidade da rede como princípio. Isso abriria o caminho para uma regulamentação posterior, inclusive com respeito à definição do papel da Anatel sobre a questão.
A concepção do acordo, embora não tenha sido surpresa, foi feita de forma fechada ao público, consumidores e sociedade civil. A proposta de construção do Marco Civil, contudo, é diametralmente oposta. Você pode comentar isso?
Questões complexas como a neutralidade da rede devem ser decididas com a maior transparência possível e participação ampla dos diversos setores da sociedade afetados. Acredito que o Marco Civil seja um modelo a ser seguido para questões semelhantes. Ele criou um fórum híbrido, com diversos grupos de interesse diferentes apresentando suas posições.
Nesse sentido, recebemos um convite para apresentar o processo do Marco Civil no Parlamento Europeu em outubro. Isso demonstra o interesse crescente na criação de fóruns plurais para a tomada de decisões, usando a tecnologia.
Como o senhor avalia o setor de telecomunicações brasileiro quanto à possibilidade de implementação de um modelo de "duas internets"?
Em países em desenvolvimento a história da construção das redes deve ser levada em consideração. Muitas vezes as redes foram construídas com participação de recursos ou incentivos públicos. Quando esse é o caso a rede deve ser tratada como "common carrier" e permanecer neutra. Não pode discriminar quanto a nenhum tipo de usuário ou conteúdo.
Acredito que a discussão no Brasil será bem diferente daquela que está acontecendo nos EUA, até porque por aqui ainda estamos um pouco distantes de termos duas internets, a tradicional e outra sem fio. Por aqui a universalização da internet tradicional ainda permanece um desafio, mas nem por isso a questão da neutralidade deve ficar de fora da agenda.
Insistindo na pergunta acima, como se inserem a Telebrás e o PNBL nesse cenário?
Diferente do plano norte-americano de expansão da banda larga, que aposta em redes wireless e em um uso otimizado do espectro eletromagnético, nosso Plano Nacional de Banda Larga aposta na universalização da internet tradicional. Nesse contexto, quando uma rede de acesso é construída com a participação recursos públicos, nem há o que discutir sobre neutralidade. Essa rede deve ser neutra e ponto final. Deve ser um common carrier e não fazer discriminação quanto a nenhum uso.
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